O poder da compra sob a ótica solidária

O "poder de compra" sob a ótica solidária -
entrevista com Euclides André Mance*
A tese de uma sociedade mais justa, onde a distância entre os extremos da pirâmide social seja reduzida a padrões mínimos, ou até banida por completo é um dos pilares de uma linha filosófica surgida na década de 1970 e que gerou ramificações na América Latina e em outros continentes. Trata-se da Filosofia da Libertação. No Brasil, mais difundidos foram a pedagogia libertadora e a teologia da libertação. Por meio do discurso político que criticava o terminal governo militar, já nos anos 80, o pensamento de libertação deu movimento e polêmica ao discurso político de boa parte da chamada "esquerda" nacional. Nesse campo, a teologia da libertação, com sua elaboração profética e contemplativa, proclamava a construção do Reino-de-Deus a partir do amor aos pobres e injustiçados, do amor aos deserdados da terra. Mas boa parte da intelectualidade brasileira deixou passar o fato desta "teologia" ser apenas uma das faces da elaboração sobre a temática de libertação inscrita em um movimento antropológico e filosófico mais amplo, que influenciou, inclusive, as artes. A Filosofia da Libertação cresceu e gerou contribuições importantes em áreas diversas como a Economia Solidária e a Economia em Rede, vertentes discutidas em meio à cena em que se desenvolve a inexorável globalização.
A entrevista desta edição da Revista Paróquias & Casas Religiosas é com o professor Euclides Mance, graduado em filosofia pela Universidade Federal do Paraná e pós-graduado em Antropologia Filosófica, com mestrado em Educação pela mesma instituição. Fomentador da Filosofia da Libertação no Brasil, desde o final dos anos 80, teve ativa participação na fundação do Instituto de Filosofia da Libertação, em 1995, em Curitiba (PR).
Autor de obras como "A Revolução das Redes - A Colaboração Solidária como uma alternativa Pós-Capitalista à Globalização Atual", "Como Organizar Redes Solidárias", "Redes de Colaboração Solidária – Aspectos Econômico-Filosóficos: Complexidade e Libertação", entre outras, teve parte de seu trabalho traduzida e publicada na Europa e cujo valor vem sendo aplicado no Brasil e na América Latina, junto a movimentos sociais e políticos, no campo da educação popular. No Brasil participou da criação da Central de Movimentos Populares e da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária.
RP&CR: O que a Filosofia da Libertação tem a ver com a Economia Solidária?
Euclides Mance: O tema da libertação é recorrente em várias áreas do conhecimento. Nos anos 70 e 80 tivemos uma rica elaboração sobre a práxis de libertação nos campos da filosofia, pedagogia, teologia, antropologia, sociologia e em outras áreas, incluindo o teatro do oprimido. A filosofia da libertação se move no campo estritamente racional e argumentativo. Desde a afirmação da dignidade humana, critica todas as formas de exercício de poder nos campos da economia, da política e da cultura em geral que oprimem e negam o direito da realização mais plena possível de cada ser humano. Ela afirma o direito à ampla realização das liberdades públicas e pessoais eticamente exercidas. O exercício concreto das liberdades supõe condições materiais, políticas, educativas e informativas. Foi refletindo e atuando sobre as questões materiais e econômicas da práxis de libertação que desenvolvemos no IFIL nossa contribuição ao movimento da economia solidária. Se fosse nos anos 70, ela seria chamada de "Economia da Libertação", fundando eticamente a economia para o bem-viver, isto é, colocando a economia a serviço do bem e da vida de todas as pessoas e sociedades, e não para promoção do capital. Trata-se da plena democratização da economia, uma vez que a economia solidária se funda na autogestão. Não há patrão nem empregado. Cada cabeça, um voto. E todos juntos podem decidir tudo o que importante para cada empreendimento ou iniciativa de economia solidária. Nela se redescobre a responsabilidade de cada pessoa e de toda a coletividade na promoção de bem-viver de todos e de cada um, para o desenvolvimento sustentável e o equilíbrio dos ecossistemas. É preciso que o indivíduo se dê conta da dimensão de seu poder, de
*Entrevista concedida a Sandra G. de Angelis. RevistaParóquias & Casas Religiosas, setembro de 2007
nossa capacidade pessoal e coletiva de gerarmos libertação no campo econômico. A economia solidária nos possibilita ampliar a nossa compreensão crítica de nossa própria existência, de nossas escolhas na esfera econômica. Quando consumimos produtos da economia solidária, fortalecemos os processos de libertação econômica de milhares de pessoas envolvidas nas cadeias produtivas solidárias. Pois todo ato de consumo é ético e político. Nos vincula a processos de dominação ou de libertação.
RP&CR: E a economia em rede é uma consequência?
Euclides Mance: "A reflexão sobre as potencialidades libertadoras da organização da economia em redes colaborativas emergiu na década de 1990. Compreendendo a economia desde o paradigma da complexidade e da filosofia da libertação, percebeu-se a importância de compreender-se adequadamente os fluxos econômicos que permeiam nossas vidas, comunidades e sociedades e que deságuam seja na concentração de riqueza cada vez maior por uma minoria de pessoas, tendo por correlato a pobreza e a exclusão social, seja na distribuição de riquezas e promoção do bem-viver das pessoas. Em outras palavras toda a sociedade está integrada em redes. Cada um de nós está integrado a inúmeras redes, de diversos tipos. Redes familiares, redes comunitárias, redes religiosas, econômicas e políticas e muitas outras. Estamos conectados a essa redes por laços de vários tipos, afetivos, lingüísticos, por atos de produção, consumo ou poupança, por nossas escolhas eleitorais, etc. Quando exercemos nosso poder, cotidianamente, fortalecemos ou debilitamos essas conexões e essas redes. Se compro produtos de empresas que exploram pessoas e degradam os ecossistemas, estou conectado a esse rede de exploração e de degração. E com o meu consumo cotidiano realimento processos de opressão e de dominação. Pois o dinheiro que gasto nesse consumo será reinvestido do mesmo jeito. Mas nós podemos reorganizar nossas conexões e interferir criticamente nesses fluxos econômicos, pedagógicos, comunicativos visando fortalecer processos de libertação, de promoção do bem-viver. Não é preciso realizar uma assembléia mundial para decidirmos como vamos fazer isso. No campo da economia, por exemplo, basta que no dia-a-dia atuemos de maneira solidária, promovendo nosso bem-viver e igualmente o bem-viver das pessoas que trabalham na produção, comercialização e desenvolvimento dos produtos e serviços que consumimos. Escolher com critérios de economia solidária os produtos e serviços que consumimos é o primeiro passo e o mais importante de todos! No campo da política, igualmente. É preciso valorizar o poder de nossas escolhas, de nossa capacidade de dialogar, de aprender e ensinar, de compartilhar as culturas, de crescer como seres humanos, desenvolvendo nossa sensibilidade e nossa capacidade crítica. Seja na micro-política, seja na macro-política, cabe agir colaborativamente em redes solidárias, compor nossos micro-poderes para transformar as estruturas injustas das sociedades, para fortalecer os processos de libertação popular.
RP&CR: O senhor diz em pensar holisticamente sobre estratégias econômicas? Como é isso?
Euclides Mance: O micro afeta o macro e vice-versa. Quando compramos um produto de uma empresa que explora as pessoas e danifica o meio ambiente, por exemplo, com este consumo nós realimentamos tal processo. Conscientemente ou não, esse processo se fortalece com a nossa “anuência” e “aprovação” tácitas. Pouco resolve depois criticar, no discurso, o acirramento do efeito estufa ou das injustiças sociais, se em nossa prática econômica estamos colaborando para que eles se agravem. Se por outro lado, compramos um produto de uma empresa que pratica a economia solidária, estamos contribuindo no enfrentamento das injustiças sociais e do desequilíbrio dos ecossistemas. Ambas as práticas ocorrem em nível micro, mas em escala trazem conseqüências em nível macro.
RP&CR: O que esse consumidor tem de fazer, então?
Euclides Mance: Quando eu digo que o indivíduo tem de ter consciência de seu poder, refiro-me à importância dele questionar os parâmetros éticos do exercício desse poder. Que ele reflita
sobre o consumo alienado, associado a logomarcas e propagandas que seduzem desejos e imaginários. É importante saber sobre o impacto real desse consumo... A que redes de poder econômico estou me conectando com o consumo desses produtos, a quem estou favorecendo? Que impactos esse consumo gera na minha comunidade, em meu país e no planeta? Trata-se de um produto descartável? Quanto lixo vai provocar? Por outro lado, muitas vezes as pessoas são obrigadas a praticar um consumo forçoso, compulsório, quando elas têm pouco ou nenhum dinheiro, mas têm de comprar aquilo que atenda suas necessidades prioritárias. Quase não dá para escolher. Há também o consumo para o bem-viver, quando escolhemos os produtos criticamente, pensando no nosso bem-viver pessoal. Temos por fim o consumo solidário, quando praticamos o consumo pensando no nosso bem-viver próprio, mas igualmente no bem-viver das pessoas envolvidas na cadeia produtiva daquele bem que compramos e no equilíbrio dos ecossistemas. Tanto o consumo compulsório quanto o consumo para o bem-viver podem ser praticados na perspectiva do consumo solidário. Quando nos integramos a redes solidárias temos condições de melhor aproveitar os recursos de que dispomos. As perguntas que devemos fazer, como consumidores, são: Como são tratadas as pessoas que trabalham na cadeia produtiva daquele produto? Qual é a atitude dessa empresa em relação ao meio ambiente? Aqui no Brasil está sendo debatida uma legislação a respeito do comércio ético e solidário e já existem sistemas locais de certificação participativa. No mundo existem diferentes sistemas de certificação ecológica e solidária e um conjunto amplo de etiquetas no campo do comércio justo.
RP&CR: E o que é a Economia Solidária?
Euclides Mance: Em sentido muito restrito, a “economia" é a ciência que trata dos fenômenos relativos à produção, distribuição e consumo, que investiga a produção, conversão, movimentação, acumulação e distribuição do valor econômico. Há correntes que definem o valor econômico de um bem considerando a sua escassez frente à demanda por ele existente. É a fomosa “lei” da oferta e da procura. Assim, quanto mais escasso for um bem e quanto maior for a sua demanda, maior seria o seu preço. Em compensação quanto mais abundante é um bem, como o ar que respiramos, ou menor for sua demanda, menor o seu preço no mercado, ainda que todos necessitem dele para viver. Quem se disporia a pagar por algo de que pode se apropriar livremente? Isso significa que as pessoas têm necessidade de ar, mas não há demanda de compra de ar no mercado, pois as pessoas não estão dispostas a trocar outras coisas de que dispõem por ar. Mas essa lógica econômica é perversa. Se onze milhões de pessoas vivem o drama da fome, mas não tem dinheiro para trocar por alimento, essa necessidade das pessoas não é demanda de mercado. Caso haja uma super-safra de batatas, aumentará a oferta, cairá o preço da batata e se os preços caírem muito, os produtos não terão sequer como pagar as suas dívidas no banco, contraídas para a produção das batatas. E assim, como colher as batatas gera ainda mais custo, esse alimento será perdido. Irá apodrecer embaixo da terra no campo porque as pessoas que estão passando fome na cidade não tem dinheiro para pagar por ele. A necessidade que elas têm de comer não se converte em demanda de mercado.
Na economia solidária é diferente. Seu objetivo não gerar lucro, mas integrar o conjunto das pessoas no processo econômico de produção, comercialização, consumo, financiamento e desenvolvimento. Na economia solidária essa conta da super-safra de batata não fecha assim. Pratica-se um preço justo pela batata e com isso os produtores podem ter seus ganhos garantidos e o produto abundante chega ao consumidor final, também de forma justa e sem desperdício. Na lógica de redes colaborativas é possível aprimorar-se a produção sob demanda e a diversificação da produção, evitando-se esses desequilíbrios. Na economia solidária não se busca as fraquezas dos produtores ou consumidores para explorá-los nos momentos de adversidade, mas compartilha-se esforços para o sucesso de todos.
RP&CR: Mas essa lógica consegue gerar resultados, digamos, tangíveis em termos financeiros?
Euclides Mance: O mapeamento oficial feito pelo Governo Federal sobre economia solidária em 2005 alcançou 41% dos municípios brasileiros. Constatou-se que, dos 14.954 empreendimentos econômicos solidários pesquisados, 77% foram criados nos últimos dez anos! Esses empreendimentos operam sob autogestão: os trabalhadores são proprietários das empresas e decidem democraticamente em assembléias tudo o que seja relevante para a empresa, inclusive a destinação dos excedentes. Inexistem as figuras clássicas de patrão ou empregado, a propriedade é coletiva, a gestão compartilhada e atua-se sob princípios solidários.
Esses empreendimentos integravam 1.251.882 trabalhadores ao final de 2005. Sua produção anual, então declarada, era de aproximadamente R$ 6 bilhões. Esses empreendimentos geraram, de 2000 a 2005, cerca de 628 mil novos postos de trabalho. Foram criados 1.250 empreendimentos a cada ano, ou 104 novos empreendimentos a cada mês. Em relação aos resultados financeiros, a maioria deles teve sobras ou pagou suas despesas. Somente 16% não haviam pago as despesas relacionadas ao mês anterior, um número relativamente baixo, em comparação com as empresas de mercado e seus níveis de endividamento.
Cabe também afirmar que todo empreendimento de economia solidária pratica a responsabilidade social, mas que a maioria das empresas que se dizem “de responsabilidade social” não pratica e até mesmo combate princípios da economia solidária – a começar pelo princípio da autogestão. Uma empresa que não cumpra com as melhores práticas de sustentabilidade, em relação ao meio ambiente, em relação aos trabalhadores, em relação ao consumo ético, etc., pode muito bem vir a contribuir, por exemplo, com grandes quantias em dinheiro para as obras da igreja, como estratégia de marketing. É preciso refletir sobre isso antes de se deixar levar pela moda e analisar sob todos os aspectos, qual é o nosso real contexto e o nosso papel dentro dos processos. No site www.solidarius.com.br, por exemplo, há mais de 1.000 endereços de empresas e de iniciativas de economia solidária.
RP&CR: Então, o senhor quer dizer que igreja deve investigar a origem dos recursos que chegam como forma de doação para suas obras?
Euclides Mance: Não só isso, mas acho que as paróquias poderiam fomentar a “cultura de economia solidária”, a começar pela reflexão dos impactos éticos de nosso consumo e sobre a importância de praticarmos o consumo solidário – isto é, pensando em nosso bem-viver e no bem-viver de todas as pessoas que trabalharam na produção daquele bem que consumimos e como o equilíbrio dos ecossistemas foi afetado por aquele processo de produção. Essa questão é muito interessante de pensar... O pão da eucaristia, antes de ser um sacramento, é fruto material de um processo produtivo. Vale ter como critério para escolher a melhor hóstia também a sua origem quando consideramos a sua qualidade. Não creio que possa haver a consagração se os produtos usados naquela celebração são provenientes de uma história de opressão, exclusão e dano ao planeta, por exemplo. É preciso ter coerência com o princípio da fraternidade, de pensar no outro, não como aquele que pode ser explorado, mas como aquele com o qual compartilhamos a vida. Onde é aplicado o dinheiro da paróquia, da empresa, da universidade e do hospital geridos pela igreja católica? Começam a surgir bancos éticos, como no caso do Banco Ético, na Itália, cujos recursos são aplicados em favor de processos sociais e de economia social e solidária. Estratégias de finanças éticas certamente irão se multiplicar em rede e imagine quantos benefícios não poderão ser conquistados quando nossas poupanças e nossos fluxos de valores realimentarem a expansão da economia solidária. É preciso refletir sobre nossas práticas. Pode acontecer do padre, durante a homilia, falar do amor universal. E ao término da missa ir a uma loja qualquer e comprar um produto sem se questionar se é importado de um país em que os trabalhadores são super-explorados ou se é proveniente de uma empresa que explore o trabalho infantil. Mas enfim, compra aquele produto porque custa mais barato. O que eu quero dizer é que o "preço justo" na Economia Solidária é aquele que é estabelecido por valores humanitários e de sustentabilidade econômica e ecológica, na relação mesma entre produtores, comerciantes e consumidores. A Economia foi feita para o bem das pessoas, e não o inverso. A economia solidária vem para criar uma nova consciência critica dos
processos econômicos e seus efeitos promovem uma economia em rede, que atualmente se expande como uma alternativa na promoção solidária do bem-viver das pessoas e das sociedades.