A defesa da Reforma Agrária foi historicamente construída a partir de premissas básicas, dentre elas, a de que sua realização significa distribuição de renda; logo, melhoria de vida possibilitada pela ressocialização das famílias beneficiadas pelo programa.
É também na busca de atingir esta premissa, que os movimentos e organizações sociais têm construído lutas por políticas públicas complementares à Reforma Agrária, como crédito, comercialização, assistência técnica, saúde, educação – na sábia compreensão que “só terra cortada não basta”. Neste sentido, lembro importantes vitórias e que se expressam, por exemplo, na implementação das Diretrizes Nacionais da Educação do Campo, no Programa de Aquisição de Alimentos [PAA] e, mais recentemente, no Programa Nacional de Alimentação Escolar [PNAE], ações que permitem justiça social no campo.
Esta compreensão de que a Reforma Agrária deve vir acompanhada de políticas públicas está prevista no artigo 187 da Constituição. Todavia, como é praxe no Brasil, é preciso mobilização para a Lei pegar, leia-se luta dos que dela precisam em especial os pobres da terra. Em pensamento didático, o professor Plínio de Arruda Sampaio ensina que a Reforma Agrária é como uma feijoada, em que o feijão é o elemento mais importante, é o ponto de partida, sem ele não há feijoada. Porém, feijão sem os ingredientes não é feijoada. É feijão. Então é isso, a terra dividida é o ponto de partida da Reforma Agrária e as políticas complementares, o sentido dela.
Em vista deste entendimento, estávamos acostumamos a defender a Reforma Agrária (a feijoada completa!) como o melhor programa “Fome Zero” para o país. Anos de pesquisa junto aos assentamentos, em particular em Mato Grosso do Sul, davam certa segurança para afirmar que em assentamento há muita carência, mas sobram fartura e esperança como a anunciar a potencialidade de melhoria do processo.
Mas, a realidade muda e, às vezes, para pior. Reforma Agrária em Mato Grosso do Sul virou coisa rara. Exemplo disso são os números do INCRA relativos ao último mandato do governo Lula: no período 2007-2010 foram implantados 38 projetos. Destes, 27 resultam de “compra e venda” – a Reforma Agrária sem conflito. São estes os números de um governo popular afinado com os movimentos de luta pela terra! Junta-se a isso o toque sul-mato-grossense com o tal “sócio-proprietário” e os assentamentos no areião – que dispensam comentários.
E se não bastasse a falta de feijão, digo de terra, tem o perverso e criminoso abandono das famílias no campo. Em visita recente para conhecimento do assentamento Canoas, distante cerca de 90 km de Selvíria/MS, cujo acesso é estrada de terra em condições ruins, constatou-se que essa prática quase toma vulto de drama. Lá existem famílias sem água, luz, casa, saúde, estrada, dignidade. Isoladas no campo, seus vizinhos próximos são os eucaliptais. Há quase dois anos na terra, esperam pelos créditos prometidos pelo Estado, mas há lotes em que o acesso à estrada sequer foi aberto – são 180 famílias, a grande maioria, já fora do lote. Ao verem o carro da UFMS, a confusão se faz ao pensarem tratar-se de representantes das instituições responsáveis pela Reforma Agrária (INCRA e AGRAER). Algumas se revoltam e protestam contra aquilo que acreditam ser mais promessa; outras enchem os olhos de esperança.
Uma família chama por demais a atenção dos alunos, é um pai e quatro crianças. Moram num barraco de lona coberto de eternit; fala dos planos para o futuro, porque o presente sem luz e água, não permite disfarçar as dificuldades. Indagado sobre a troca da vida na cidade pelo assentamento, o pai revela o arrependimento para logo voltar atrás, jogando com a esperança de que no próximo ano a vida vai melhorar.
Aqueles que acompanham a Reforma Agrária, sabem que os dois primeiros anos são os mais difíceis, a chamada prova de fogo. É o período de estruturação do lote, onde pouco se produz e muito se consome. A não presença do Estado nesta fase é porta aberta para o sofrimento e a desistência das famílias, que depois, enchem os números da tal “falta de vocação” do beneficiário.
É preciso dizer em bom tom que a Reforma Agrária não é um projeto fracassado. Ao contrário, é fundamental para a democratização do país. Evidência disso, é que mesmo jogadas no meio do mato, algumas famílias resistem produzindo e enfrentando os problemas da comercialização. Mas a Reforma Agrária não pode ser essa espécie de darwinismo em que só os “fortes” resistem. Este tipo de distribuição de terra não é Reforma Agrária!
Resta aos pobres do campo, que ainda não trocaram a pedagogia da paciência pela da rebeldia, implorar. E eles clamam indagando o que a UFMS pode fazer por eles. Mal sabem que é quase nada. Não temos o poder para obrigar que a Lei se cumpra – aquela que reza que a Reforma Agrária seja feita. O INCRA estadual, mergulhado em denúncias de corrupção, agoniza, não dando o necessário distanciamento entre o passado investigado pelo Ministério Público e as ações do tempo presente – ações que devem apontar a continuidade da Reforma Agrária.
Já a nós, resta o dever de denunciar esta contrarreforma agrária e a impotência que nos paralisa, bem como o temor do dia em que não será mais possível explicar aos alunos a diferença entre Reforma Agrária e favela no campo.
Ao que parece, o governo petista, que contou com o forte apoio popular para chegar ao poder, ainda não entendeu o sentido da Reforma Agrária e a força camponesa.