Compreender o que a cosmovisão indígena propõe implica em questionar as formas da educação tradicional para enfrentar a vida. Por exemplo, saber diferenciar entre o "viver melhor”, base do desenvolvimento ocidental, em relação ao "bem viver”, denominado "Sumak Kawsay” (em kichwa).
O "viver melhor” é o paradigma ocidental: implica em progresso e acumulação de bens. Esse conceito tem muitas alternativas, de acordo com o status dos grupos sociais, pois para os pobres será ter acesso a uma melhor qualidade de vida, o que é legítimo. No entanto, para as elites, o viver melhor será conseguir mais bens e mais poder. A classe média, por seu lado, concentra seus esforços em aproximar-se do nível de vida das elites.
Em contraste, o "bem viver [Sumak Kawsay, ou Sumaq Qamaña, em Aymara] do mundo indígena implica em um viver ético, sóbrio, tomando da natureza apenas o necessário para a vida, sem prejudicar seus direitos, pois a natureza é considerada uma mãe via”, diz Gerónimo Yantalema, indígena, integrantes da Assembleia Nacional, órgão legislativo do Equador.
De fato, a harmonia entre o direito da natureza e o direito coletivo pode satisfazer o direito individual; pelo contrário, o cumprimento do direito individual, com suas particularidades em dimensão e profundidade, nem sempre garantirá a vigência do direito coletivo e tampouco do direito da natureza.
A economia solidária
Existem vários exemplos de práticas do bem viver implementados há décadas no Equador, como o de Salinas, um povoado na Província de Bolívar, na serra central equatoriana.
Na década de 1970, era somente um entre centenas de povoados indígenas sumidos na extrema pobreza. Quatro décadas depois, Salinas era um povoado cheio de empresas comunitárias que funcionam sob uma marca comum: "El Salinero”.
Começou com uma pequena planta de laticínios na Casa Paroquial e uma loja no mercado popular, na capital, Quito. A ideia foi a produção comunitária, enlaçando a fábrica com a pequena produção leiteira indígena e camponesa. No início, tiveram o apoio da cooperação internacional; mas, hoje, funcionam 22 fábricas de queijo associadas em uma cooperativa de produção.
"El Salinero” não só é um verdadeiro consórcio empresarial que produz laticínios, pizzas, cogumelos silvestres, chocolates, ‘torrones’, têxteis e artesanato. Possui um pequeno engenho açucareiro e se dedica à piscicultura e à comercialização de outros produtos agropecuários e constituiu-se em uma rede de economia solidária que fomenta novos projetos, capacitando outras comunidades e participando em consórcios financeiros e redes de comercialização.
Os excedentes são investidos em novos projetos sociais que beneficiam toda a população.
"Todo o povo é ‘El Salinero’, pois todos somos parte da produção, da comercialização e dos benefícios. Começamos antes de que se começasse a falar em bem viver e podemos dizer que nós praticamos o bem viver”, afirma um de seus fundadores e atual administrador, Alonso Vargas.
Nos paramos da cêntrica Província de Cotopaxi situa-se outro povoado chamado Tigua que, como Salinas, tem fomentado a produção comunitária ao redor da arte e da cultura indígena. "Meu pai, meu avô e meus tios avós começaram a pintar em couro de novilho, tal como faziam nossos antepassados. Pintou-se a história e os costumes das comunidades de Tigua e, quando começamos a vender, todas as comunidades começaram a vender e, agora, nossa arte é conhecida em todo o mundo”, conta Siza Toaquiza, jovem pintora e cantora popular que pertence à terceira geração dos denominados "Pintores de Tigua”.
Tigua é outro exemplo de produção comunitária e de apego à mãe terra. O êxito internacional de sua arte não provocou a mudança de seus costumes; ao contrário, tem feito com que as novas gerações de indígenas já não pensem em migrar e ressaltem as oportunidades proporcionadas pela convivência comunitária.
"Meu pai, Alfredo Toaquiza, é conhecido por ser pintor internacional indígena e é o presidente da Cooperativa de Artistas de Tigua; porém, continua vivendo na comunidade porque também se dedica à agricultura, porque nós mesmos devemos produzir nossos alimentos, tanto para a família quanto para a comunidade, porque isso é o bem viver: aproveitar tudo o que nos dá a mãe terra; porém, que isso não mude quem somos”, afirma Siza Toaquiza, que, em seus 19 anos converteu-se em referência da música popular indígena.
Primar pelo coletivo
A cosmovisão indígena aplicada no mundo ocidental daria primazia ao coletivo e resolveria alguns problemas que são consequência do modelo de desenvolvimento ocidental, como o transporte.
Priorizar o transporte público, limitando a produção de carros particulares, reduziria os níveis de contaminação, economizaria recursos naturais, provocaria uma redefinição da indústria automotriz e a reconfiguração dos planos viários; ajudaria a nivelar as balanças de pagamentos entre países ricos e países em desenvolvimento, liberando recursos para serem investidos em linhas mais de acordo com o bem viver, como saúde e educação e, inclusive, se reduziria o barulho, tornando as cidades mais amigáveis.
Da mesma forma, a estrutura comunitária que tem permitido a sobrevivência dos povos indígenas pode ser aplicada no planejamento de bairros comunitários.
Segundo Javier Alvarado, coordenador da Confederação Nacional de Bairros do Equador (Conbade), "os programas de governo devem olhar a capacidade de cada bairro para a dotação de insumos, como alimentação e vestuário para as escolas dos arredores; delegar a administração de recursos, como a água, e a implementação de sistemas de mercado comunitário”.
A Conbade mantém uma proposta nacional para a conformação de governos comunitários em bairros urbano-marginais, o que facilitaria o investimento social coordenado entre autoridades locais e a representação barrial.
No plano do desenvolvimento tecnológico, ao ser ligado ao serviço ao ser humano, se evitará a acumulação de poder e a acumulação de capital baseados na apropriação e no sequestro de saberes.
"O conhecimento é coletivo e o acesso é livre. A inscrição de patentes é alheia à cosmovisão indígena, pois implica na apropriação particular de algo que somente pertence ao coletivo”, assegura o assembleísta Yantalema.
Essas e outras aplicações práticas à vida de nossas sociedades implicam em uma reorientação das formas de pensamento, pois Sumak Kawsay, mais do que um modelo econômico, é uma proposta de transformação cultural; é repensar as formas de sobrevivência e voltar a valorizar a matriz comunitária como princípio de vida.
Por Luis Ángel Saavedra desde Quito
Serie: Buen Vivir, uma vivencia e proposta para tomadores de decisão e líderes de opinião